Circo das luvasEnclave #129: quem diria que uma luta entre um jovem atleta e um idoso sem joelho seria deprimente? Fernanda Torres. Digo, e Fernanda Torres. Ela não disse isso. Mas talvez diria. É, Fernanda Tor...EDITORIALBom dia! Bem-vindo(a) à Enclave #129, a newsletter que esquiva, esquiva, pendula, pendula, jab, direto, cruzado. Nossa última edição foi uma choradeira de qualidade mediana sobre o excesso de telas. Por sua vez, a edição de novembro do RelevO está disponível em nosso site. HIPERTEXTOCirco das luvasQuem diria que uma luta entre um jovem insolente e um senhor cansado seria um espetáculo deprimente? “Tom Jobim brincava que temia encerrar a carreira aos 80 anos, cantando ‘Garota de Ipanema’ num circo do interior e sendo vaiado”. Fôrma sem forma, sombra sem corSe você deu a sorte de estar por fora, não sabe que Jake Paul, um youtuber milionário empreendedor americano etc., lutou com ninguém menos que Mike Tyson, o Mike Tyson. Aquele Iron Mike, outrora o mais jovem campeão de pesos pesados da história, com apenas 20 anos. Mas isso faz muito tempo (1986), e o tempo passa [o rodo]. Sua última luta oficial havia sido uma derrota em 2005, há quase 20 anos. Jake Paul, nascido em 1997, fez muito dinheiro com a atenção de pessoas mais jovens que eu, então migrou para alguma outra coisa, então decidiu – junto de seu irmão, Logan – chacoalhar o mundo das lutas quebrando o pau com (ex) atletas (beeem) selecionados. Tyson não foi o lutador mais consistente de sua época, mas certamente foi o mais explosivo, temido, marcante. Quem o viu nos anos 1980 nunca esqueceu; não tive o privilégio (nem Tyson, nem Senna), então cresci apenas com as lendas. Tyson era por si só uma bomba, uma assombração. Um ícone, afinal. Para uma criança da minha época, “boxe” significava “Tyson”, ponto — a história da mordida na orelha era por si só tão famosa quanto a modalidade.¹ Mas Tyson tem 58 anos. E, afinal, por que diabos sequer queremos assistir a isso? Por que nossa curiosidade não resiste? Aí entra o grande mérito do jovem Paul. O insight. Conversão. Sales. Leads. Marketing digital. Infoprodutos. Et cetera. Pois bem, aparentemente apegado à dinâmica de ser detestado – até porque tanto faz, ele já é um winner e winners podem fazer qualquer coisa –, Jake Paul promoveu ativamente a imagem de jovem insolente, inclusive adotando o epônimo The Problem Child. Ele basicamente fez questão de parecer um cuzão. Diante de Mike Tyson. Para Mike Tyson. Na frente de Mike Tyson. A cereja do bolo promocional foi a pesagem, no dia anterior. Paul pisou no pé de Tyson e levou um tapaço na cara. “Ah, eu pisei no pezinho dele, é?”, ele depois diria em entrevista, com espontaneidade comovente. O corolário é óbvio: todos queriam ver Tyson cortar sua cabeça. Afinal, quem esse moleque pensa que é? O que significa, para mim e para o mundo, se o grande Hércules com o qual cresci não consegue dar uns tabefes num novo douchebag? Por fim, estamos falando de uma luta oficial, profissional, válida para o cartel de cada um. Não se tratava de uma exibição, um “amistoso”. Era para valer, literalmente. Mike Tyson aceitaria essa mancha? Como sempre, queríamos a catarse. Um jovem contra um idoso numa modalidade que consiste em agilidade e tempo de reação? Pouco importa. Era Mike Tyson. Era, principalmente, nossa pequena vingança anímica terceirizada em narrativas. O circo estava armado, mas com um breve adendo: se você chega ao picadeiro e não sabe quem é o palhaço, meu amigo, tenho más notícias… Força paralisada, gesto sem vigorTudo é muito americano no AT&T Stadium. Assentos premium, cheerleaders, participações especiais de winners (atletas, atores, o bilionário dono da franquia); trailers, promos, celebrities passeando na tela antes do grande evento. A Charlize está lá – lindíssima! Hino sagrado antes do grande embate.² Na entrada, a personificação – obviamente calculada – da boçalidade. O espetáculo montado entre “raiz” e “Nutella” (que tristeza escrever essas palavras!). Paul e seu entourage dentro de um Chevy Dually, um pombo dentro de uma gaiola (Tyson adora pombos), o som de ‘Something in the air tonight’ (Tyson em Se Beber não Case). Iron Mike sozinho. Os dois primeiros rounds – eram oito de dois minutos cada – mostraram alguns lampejos daquele antigo espírito assassino, que derrubava torres 10, 20, 30 centímetros mais altas que seu módico 1,78 metro. Até que a realidade bateu. Muito se discute (com razão) sobre a autenticidade desse tipo de evento. Seria tudo armado? Sempre tendo a acreditar nas hipóteses mais simples: não é preciso esquematizar. Não tudo. Depois do segundo round, Jake Paul controlou a luta com inegável tranquilidade. Acredito que, sim, ele ainda temia levar alguma pancada inesperada e acabar com a noite. Porém, a dinâmica do combate permanecia sob seu controle. Com baixo risco. E esse tipo de evento megalomaníaco existe justamente porque esses riscos já foram levados em consideração. Não é preciso amarrar detalhes. Um sujeito de 27 anos bem treinado, bem preparado fisicamente, devidamente assessorado e com alguma experiência de luta enfrentou um senhor de 58 com problemas no joelho e aposentado há 20 anos em uma luta profissional. Ponto.³ Jake Paul teve pena. Poderia ter ido para cima do Iron Mike. Não foi. Este se via cada vez mais frustrado por não conseguir atingir seu oponente; se pudesse, o derrubaria. Não parava de morder a própria luva. E assim – para variar, not with a bang, but a whimper –, a plateia murchou logo que se deu conta. Aquilo que nos foi prometido não aconteceria. A catarse não só não viria como se subverteria em logro. Aos poucos, a esperança da nostalgia se fechava. No entanto, os espectadores-clientes haviam pagado pela nostalgia. Todos queriam “ver o Tyson”. Rever, reencontrar. Entender aquilo que seus pais relatavam. Ao vivo, num evento, com o devido entretenimento. Com a Charlize Theron. Mas em que consiste “ver o Tyson?”. Aquele é Mike Tyson? Como um Navio de Teseu cujos componentes não mudaram, a resposta lógica é “sim, claro”. É o mesmo Michael Gerard Tyson, com o mesmo CPF (ou driver's license), a mesma tatuagem no rosto. Contudo, o que no fundo sabemos, porém não aceitamos – muito menos nossas carteiras – é que “o curso que se pode discorrer não é o eterno curso; o nome que se pode nomear não é o eterno nome”. Aquele Mike Tyson morreu faz tempo. Talvez quando o uppercut de Buster Douglas lhe despertou uma inédita humildade; talvez na primeira derrota para Evander Holyfield; talvez junto da orelha deste. Aquele Mike Tyson pode ter morrido nos três anos em que passou na prisão, ou quando (ou porque, ou se) ele se tornou uma pessoa mais calma e resolvida com os próprios demônios. A morte de Iron Mike pode ter sido uma bênção para o Michael Gerard Tyson. O fato é que ele não está entre nós há muito tempo, a despeito dos sussurros do fantasma rentável da nostalgia. Contraintuitivamente, Jake Paul, le douchebag, em um contexto muito específico, foi um gentleman. Não estou dizendo que ele é um cavalheiro, ou gente boa, ou um grande coração (também não estou dizendo o contrário – não o conheço e o assunto tampouco me interessa). No entanto, dentro daquele recorte específico, ele se compadeceu de um leão de circo já sem noção de tempo e espaço, dopado da própria sobrevivência. O que testemunhamos foi um espetáculo deprimente. Não só pelo passar do tempo, mas também por nossas próprias expectativas. E como somos pouco mais que a junção entre o que nos deprime e como reagimos à deprimência, lá estava eu às duas horas da manhã, iludido de que teria imunidade a artimanhas tão rasteiras do entretenimento, assistindo aos restos mortais de Hércules engolidos por uma hidra cujas cabeças nem precisavam renascer. Assistindo ao abate de um elefante. O espectador, esse cliente passivo porém ansioso, nunca conseguiu sua catarse esperada, mas o show vendeu e ateu recorde de audiência. E Iron Mike foi muito bem pago para isso. Ao fim da luta, Paul agradeceu aos “verdadeiros heróis”, começando pelo exército americano. BAÚIsolados com pena
Fernanda Torres, esses dias, Uol Prime. 1 Lembrando que tudo que puder virar produto inevitavelmente virará. 2 O grande encontro da noite foi antecedido por três lutas: uma patifaria de Whindersson Nunes, muito bem pago para apanhar de um lutador de verdade (e ser sarrado, o que aparentemente lhe é engraçado mesmo num contexto de luta profissional); um confronto digníssimo entre Mario Barrios e Abel Ramos e, principalmente, uma revanche devastadora entre Katie Taylor com suas cabeçadas de pub irlandês e a porto-riquenha Amanda Serrano. 3 Até que ponto não criamos teorias, às vezes comicamente mirabolantes, para encontrar uma explicação que não estilhace nossa noção de realidade? Quantas vezes o Brasil precisou perder no futebol para acreditarmos que o Brasil poderia perder no futebol? Por fim, confabular o que aconteceria se os dois se enfrentassem com a mesma idade é uma perda de tempo até em termos de exercício mental. Essa luta não existiria, nem deveria — só existe porque um tem 58 anos. Se existisse, duraria 10 segundos. Eles não são do mesmo universo. |
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quinta-feira, 21 de novembro de 2024
Circo das luvas
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