Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, trazemos as centrais da edição de outubro de 2022. Manuscritos recusadosTodos sabemos que existem três certezas nessa vida: a morte, a abstenção alta e o escritor frustrado por seu manuscrito recusado. Certos de que é preciso perdoar e de que só se vive (e morre) uma vez, o Jornal RelevO, após contato com as principais editoras do Brasil, desconhecidas do público em geral — que tem mais o que fazer —, traz em primeira mão uma seleta de recusas que ora cativa, ora revolta, ora conduz ao linchamento injusto de seu respectivo editor, com quem via de regra nos compadecemos. ![]() Jornal RelevO: edição de outubro de 2022 Guerra Frita: a balada que uniu o mundoFicção científica, 240 p. Sinopse: na União Soviética, é você quem conduz o DJ à virada – da guerra. Neste espetacular amontoado de clichês da “ficção especulativa”, o ser humano é muito malvado; as empresas são muito malvadas; o governo é muito malvado e a tecnologia, apesar do néon nas ruas, também — menos os pets, porque eles são proibidos de circular. Todavia, em plena Guerra Fria, um grupo de hackers descobre uma nova substância capaz de despertar o melhor nos mais variados povos – incluindo o carioca. A substância capaz de salvar o mundo, porém, depende do contato com sintetizadores, drum machines e loops em 150 BPM (e de um glossário, como 75% do livro). Guerra Frita: a balada que uniu o mundo infelizmente não será publicado: nosso mundo ainda não está pronto para as verdades que o romance revela. Estagiário dos AnéisFantasia, 800 p. Sinopse: porque ninguém nasce Senhor. Nesta prequel à prequel da televisão, acompanhamos toda a verdadeira saga de Frodo Smigol Harry Potter, que, impelido para ajudar sua comunidade em Nárnia, começa sua carreira como um mero office boy de orcs, goblins, góticos e elfos. Ao contrário da série televisiva – a mais cara da história –, este é o romance mais barato da civilização, tendo custado absolutamente nada, nem mão de obra. Até por isso, não apresenta condições de publicação. O gerador de texto que o criou é rústico e, ao contrário dos heroizinhos de Estagiário dos Anéis, desprovido de qualquer magia. Decepcionada com o que acreditava ser um “verdadeiro bacanal do domínio público”, a editora também alegou dificuldades de negociação com os detentores dos direitos da obra por conta da burocracia do CIEE, que havia promovido o romance. O Identitário BournePolicial, 400 p. Sinopse: sua memória é uma página em branco. Ele sabe apenas que foi encontrado no mar Mediterrâneo, quase sem vida. Há poucas pistas sobre sua identidade: um microfilme implantado sob a pele e marcas de uma possível cirurgia plástica. Este misterioso e conturbado herói se vê preso em um labirinto enlouquecedor, enredado em uma caçada violenta cheia de conspiradores e assassinos que querem a sua cabeça a qualquer custo. A CIA, o Exército dos Estados Unidos, organizações terroristas e órgãos de inteligência do mundo todo estão à sua procura. Sem poder confiar em ninguém, Bourne foge com apenas um objetivo: utilizar pronomes neutros. Guerra Frita 2: a Batalha do CrossFriteSuspense/aeróbica, 145 p. Sinopse: baseado em fatos reais e no consumo de um pouco de drogas, esta sequência não encomendada de Guerra Frita se passa em Botucatu. Um agente infiltrado da KGB investiga a ascensão de um grupo político extremista cujo lema de campanha é “Coloca a culpa nas costas e agacha”. Depois de seis meses de investigação na feira local, no único complexo esportivo da cidade e em mais seis academias, Dimitri Svetlana Nenêca descobre uma intrigante trama envolvendo DJs e adeptos de certa seita de treino intensivo com marca registrada em busca de domínio do território local. O argumento de A Batalha do CrossFrite, idealizado por um grupo de fãs de anime, de Segunda Guerra Mundial e do produtor musical Skrillex, se passaria em um sítio da região, mas, pelas dificuldades de acesso de pessoas e pneus agrícolas, além da ausência de energia elétrica, os escritores não conseguiram completar a trama ou mesmo justificar por que algum grupo extremista reivindicaria o domínio de Botucatu. Leitores beta do projeto alegaram problemas de verossimilhança (já que nem a primeira parte foi publicada) e de importância. “Não, não, por favor, não!”, cravou o notável crítico finlandês Charles Frildapoha. Lei Rolanê - Edição de ColecionadorVerborragia acadêmica, 120 p. Sinopse: um grupo de talentosos artistas liderado pelo doutor (em Teatro) Dan Browser se une para obrigar o governo a proibir a participação de inteligências artificiais em concursos artísticos patrocinados com dinheiro público. O que eles jamais imaginariam é que o Congresso do país seria, na verdade, um imenso robô a serviço de um algoritmo poderoso com o intuito máximo de decretar o fim dos artistas no planeta Terra. O que tirar disso? O audacioso projeto – dissertação de filosofia, teatro, geopolítica e sociologia lida apenas pelo autor-marmanjo e, talvez, por seu orientador – vem encontrando diversas barreiras extratextuais. Um desafio para a obra sair do papel tem sido o alto custo de impressão e as consequentes dificuldades de execução — Lei Rolanê seria o primeiro livro do mundo com uma capa-instalação. Outro empecilho toca em algo geralmente irrelevante no meio literário: direitos autorais. Assim, o primeiro livro produzido por um coletivo de coletivos literários vive uma crise na aprovação das etapas de trabalho por simples falta de consenso. Contudo, o que realmente deve comprometer a realização do projeto é o desemprego do líder Dan Browser, que jura que merece ser valorizado porque defendeu uma dissertação com análise psicanalítica de um clipe do Kanye West – e ganhou um diploma por isso. Lei Rolanê - Edição de Colecionador ainda previa, naturalmente, que o autor exibisse sua manjuba no espetáculo de lançamento. Sósias: liga nacional de escritoresNão ficção, 300 p. Sinopse: “Eu sou a Virginia Woolf de Sorocaba, seu escroto”, dispara Claudinha Ferraz, 34. Entre microrrivalidades irrelevantes, baixa adesão e jurados de moral dúbia (“votei na Clarice, né; você que leve o Machado pra casa”), o evento “Sósias: liga nacional de escritores”, realizado em agosto de 2022 num ginásio de basquete de Santo André-SP, ganha um livro-reportagem detalhado, específico e profundamente desinteressante, de capa mole e leitura dura. Com ampla cobertura da mídia especializada em literatura, de parentes que precisavam de dinheiro e daqueles que foram lá para trabalhar, o evento despertou a atenção de inúmeros jornalistas sarcásticos em busca da bizarrice perfeita, além de um setorista de fisiculturismo profissional, que apenas se perdeu mesmo. A seriedade da publicação, concretizada pelo selo do evento, em uma cobertura assaz chapa-branca, demove qualquer encantamento deste manuscrito. Não ajudou o fato de o mestre de cerimônia ser o sósia do Gabigol, nem a falácia de um dos organizadores – sutilmente apelidado de “Sigmund Fraude” – de que a publicação teria patrocínio do Google. Passarela Cabocla - O RoteiroBang-bang, 80 p. Sinopse: em um colégio de Ensino Médio de uma região periférica de Curitiba, jovens violeiros disputam espaço com jovens sem violão. A passarela do colégio, que liga o Bloco A ao Bloco B, torna-se o epicentro de um drama sangrento que une (na verdade, afasta) uma dúzia de estudantes tocando Legião Urbana sem parar (em 2022…) e adolescentes cansados, já dispostos a adentrar o mundo da criminalidade pelo fim do martírio auditivo. A obra, com direitos autorais previamente descartados por todos os serviços de streaming existentes, está embargada na Justiça por conta da investigação de um assassinato motivado pela performance acústica de ‘Ana Julia’. César Late!: o Cão-PesquisadorInfantojuvenil, 60 p. Sinopse: da união de um bolsista CAPES com o ilustrador Zirolho saiu uma das ideias mais cretinas e ultrajantes da história da literatura ocidental — à frente de KamaSupla, a versão audiolivro odiosa e porn-sustentável do clássico indiano, com sotaque da família Matarazzo. Mesmo com apelo pedagógico (ou talvez por isso) e direcionado ao público de 11 a 14 anos, César Late! consegue a proeza de irritar jovens, pesquisadores e lideranças da causa animal, o que até seria um mérito se o leitor se destituísse de seriedade, mas se mostra um tremendo fracasso quando o assunto é entretenimento mínimo. Ao longo de 60 páginas de puro tédio e literatura de caixotinho, nos deparamos com um pinscher alucinado farejando artigos para enriquecer o currículo e ensinando jovens a pensar fora da caixa (nas normas da ABNT). Na página 37 – que o editor Luiz Schweinsteiger considera o momento mais detestável de sua vida depois de ser agredido na FLIP –, o pinscher-protagonista se torna bípede e começa a recitar uma passagem do divertido O Guarani, de José de Alencar, relembrando a encantadora obra que o futuro vestibulando poderá ser obrigado a ler. O original conseguiu a duvidosa façanha de ser reprovado pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que, em uma manifestação pioneira, respondeu ao requerimento latindo. |
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sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Manuscritos recusados
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