Uma grande volta de medalhas, diplomas, cortinas e CannesHomenageamos Adhemar Ferreira da Silva, um brasileiro absurdo. Com Vinicius, Niemeyer e Jobim. Antônio Maria.EDITORIALBom dia, assinante e colaborador(a) do RelevO! Como você está? Bem-vindo à Enclave, a newsletter que não compactua com aspiradores, impressoras e guarda-chuvas. Nosso texto de hoje já estava quase pronto, até que uma descoberta acidental – praticamente o único motivo pelo qual vale a pena viver – tomou a frente. Como um sprint na reta final na pista atlética. Ainda embebidos de espírito olímpico (xingar no trânsito só amanhã) e lamentosos pelo fim desse evento desafiador de limites físicos e mentais, resgatamos não só o ilustre brasileiro Adhemar Ferreira da Silva, mas também sua relação com o teatro e o cinema brasileiros. Em notas paralelas, trazemos aqui as novidades da Seiva, nossa parceira querida:
Agora vamos voltar os anos 1950. Até breve! HIPERTEXTOAdhemar: uma grande volta de medalhas, diplomas, cortinas e CannesAdhemar Ferreira da Silva (1927-2001) é um dos maiores ícones do esporte brasileiro, com uma carreira marcada por feitos extraordinários no atletismo. Ele se destacou como bicampeão olímpico no salto triplo, conquistando medalhas de ouro nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952, e de Melbourne, em 1956. Em Helsinque – que em Portugal é Helsínquia e em finlandês só pode significar “pia do inferno” –, Adhemar quebrou os recordes mundial e olímpico com um salto de 16,22 metros. Foi a primeira medalha de ouro do atletismo brasileiro e apenas a segunda em Jogos Olímpicos.
Em Melbourne, ele superou novamente sua própria marca, com um salto de 16,35 metros. Esses feitos fizeram de Adhemar o primeiro brasileiro a conquistar duas medalhas de ouro olímpicas, consolidando sua posição como um dos grandes nomes do esporte mundial. Como se não bastasse, ele costuma ser creditado como o criador da volta olímpica. A história remonta à Olimpíada de 1952, lá mesmo na pia no inferno. Depois de vencer a disputa do salto triplo, o medalhista deu uma volta inteira ao redor da pista, segurando uma pequena bandeira do Brasil, enquanto recebia os aplausos do público. Essa celebração espontânea acabou se tornando uma marca registrada de comemorações esportivas. Vale ressaltar: ele costuma ser creditado; é difícil pontuar a exata criação da volta olímpica.¹ Segundo o próprio Adhemar:
Além de suas conquistas olímpicas, Adhemar estabeleceu cinco recordes mundiais no salto triplo ao longo de sua carreira, sendo o último em 1955, quando saltou 16,56 metros. Ele também brilhou nos Jogos Pan-Americanos, conquistando medalhas de ouro nas edições de Buenos Aires (1951) e da Cidade do México (1955). Seu legado ficou eternizado no Hall da Fama do Atletismo: trata-se do único brasileiro da lista. And now for something completely differentAdhemar não era só atleta, medalhista e recordista olímpico. Segundo a CNN, ele também “era formado em Direito, Belas Artes, Relações Públicas e Educação Física, falava vários idiomas, foi adido cultural do Brasil na Nigéria, colunista do jornal Última Hora”³. Lógico, não tudo enquanto atleta. Escultor, sim: sua formação e seu ofício precederam a incursão no atletismo. Palavras dele:
Isso só para contextualizar que ele não cairia de paraquedas (ou de salto triplo) na arte – qualquer arte. Adhemar sabia tocar violão e esculpir. Depois da Olimpíada de Helsinque, já trabalhava na imprensa, dividindo seu tempo entre o atletismo e o cargo de funcionário municipal de São Paulo. Jânio Quadros, o imbecil – então prefeito de São Paulo –, ainda o demitiria pelo tempo fora do trabalho, representando o Brasil em competições internacionais. Assim, precisamos pular alguns anos⁴ para chegar em Orfeu da Conceição. A história é famosa, mas por outros dois protagonistas. Vinicius de Moraes, 42, queria adaptar o mito grego de Orfeu à realidade das comunidades cariocas. Ele precisava de um músico, então foi apresentado ao jovem arranjador, compositor e maestro Antonio Carlos Jobim. O ingênuo Tom, 29, perguntou ao [ainda] pomposo diplomata “vai um dinheirinho nisso aí?”, e assim a parceria entre eles começou.
O espetáculo estreou em 1956 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Nos cenários, apenas Oscar Niemeyer⁵. Nessa época, Adhemar treinava no Vasco da Gama, não mais no São Paulo, e conheceu Vinicius no Rio de Janeiro. E quem complementaria um panteão com Vinicius, Tom e Niemeyer? Jânio Quadros. Brincadeira⁶. Você já entendeu. Creditado como “Ademar Pereira da Silva”, o medalhista olímpico chegou a atuar na peça. E aqui temos algumas dúvidas nos detalhes. Segundo sua filha, Adyel, a peça teve apenas uma apresentação. Mas sabemos que houve mais, como a própria edição brasileira, publicada pela Companhia de Bolso (2013), informa. E nessa mesma edição, “Ademar Ferreira da Silva” – nome errado, sobrenome certo –, consta no elenco, mais especificamente no coro. Encontramos uma foto catalogada apontando Ad[h]emar no acervo da Funarte. A peça estreou em 25 de setembro de 1956, e as Olimpíadas de Melbourne aconteceram entre o fim de novembro e o início de dezembro. Quem sabe Adhemar não participou da temporada inteira, daí a informação de sua filha. O fato é que Orfeu da Conceição foi um marco por ter um elenco inteiramente formado por atores negros, o que era (ainda mais) incomum. Musicado por Tom Jobim e Luiz Bonfá, o espetáculo encantou o diretor Marcel Camus, que aceitou adaptá-lo ao cinema – digo aceitou porque Vinicius já trabalhava no roteiro com o produtor Sacha Gordine⁷. Vale lembrar que o Poetinha não só havia sido crítico de cinema, mas também servira como vice-cônsul em Los Angeles entre 1946 e 1950. Para engrossar a carteirada, ele era amigo de Orson Welles⁸. Daí surgiu Orfeu Negro (1959), com elemento quase todo novo – exceto por Adhemar, agora (inequivocamente) a Morte. Na peça, o papel (de Dama Negra) havia sido interpretado por Francisca de Queiroz. Orfeu Negro, tecnicamente um filme franco-italiano, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ajudando a difundir a cultura brasileira pelo mundo. Quem saiu ganhando foi o francês, mas isso é papo para outra conversa. O fato é que Adhemar, o monstro, estava lá. Também lá. As trilhas sonoras – da peça e do filme – também são um capítulo à parte. Ali se eternizaram belezas como ‘Se todos fossem iguais a você’, ‘Lamento no morro’, ‘A felicidade’ e ‘Manhã de Carnaval’, monumentos da cultura brasileira. Não sem alguns ruídos:
De nossa parte, fica a reverência a este personagem único da história brasileira. Adhemar foi um monstro, um mito e um campeão, tudo isso com a versatilidade, a articulação e a inteligência encontradas apenas em indivíduos fora da curva. É com o mais saudável ângulo do pertencimento nacional – de que serve a palavra patriotismo? – que lembramos este atleta e artista, epítome do que há de melhor no brasileiro. Curiosamente, Adhemar Ferreira da Silva e Luiz Bonfá morreram no exato mesmo dia: 12 de janeiro de 2001. No Além, ouviu-se ‘Manhã de Carnaval’. BAÚBeleza
Antônio Maria⁹. Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp.130-131. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 07/11/1954. 1 Ou seja, estamos sendo lamentavelmente cautelosos, o que não bate com o nacionalismo aflorado pelo espírito olímpico. Esqueçam tudo isso: Adhemar com certeza foi o primeiro a dar uma volta olímpica, inventando-a e popularizando-a para o planeta inteiro. BRASIL! 2 A continuação do depoimento é ainda mais fantástica: “E naquele ano de 52, um outro atleta também deu a volta olímpica. Foi Emil Zatopec, da Tchecoslováquia, por razão de ganhar os 5.000, os 10.000, e ganhar a maratona. E a família Zatopec levava quatro medalhas de ouro, porque sua mulher, Dana Zatopec, ganhava a prova do arremesso do dardo, então foram quatro medalhas de ouro. Emil Zatopec foi convidado, tal como da Silva, a dar a volta olímpica. O que eu senti quando estava dando a volta olímpica? (…) O público não aceita, mas eu não senti absolutamente nada. Explico por que: eu sabia o que estava fazendo, mas não dava para interfectar, porque eu estava vindo de uma concentração de quatro meses, quatro meses com o pensamento voltado para aquele instante. Então a partir do término da competição, eu comecei a desmanchar dentro de mim”. 3 O site da Cásper Libero confirma sua formação como Relações Públicas, complementando que “Além da Comunicação, Adhemar se formou em Belas Artes, Educação Física e Direito”. 4 A vida de Adhemar é realmente impressionante, então precisamos fazer muitos recortes. Recomendamos fortemente a leitura de seu depoimento ao Museu da Pessoa. Versão completa (1h14min) aqui. 5 Palavras de Vinicius: “…e não apenas porque eu acredite que nada de ruim poderá jamais sair das mãos de Oscar Niemeyer. (…) [Niemeyer] é o antimedíocre, e o é sem se furtar à dialética da vida, sem tirar o corpo fora à injunção de não deixar sua criação apenas no papel mas de realizá-la com as imperfeições decorrentes de mil e um fatores exteriores que intervêm posteriormente na sua realização” (Orfeu da Conceição, Companhia de Bolso, 2013). 6 O pior é que Jânio, já como governador, tentou colaborar com Vinicius, oferecendo levar a peça para São Paulo. “Em São Paulo particularmente a cooperação encontrada foi inexcedível. O governador Jânio Quadros prometeu-me pessoalmente autorizar uma subvenção de duzentos contos, caso a Comissão de Teatro estivesse de acordo com o pedido” (Orfeu da Conceição, Companhia de Bolso, 2013). 7 Um nome completamente Hermes & Renato. 8 É fácil encontrar relatos de Vinicius sobre/com Welles no site da VM Cultura. 9 Por fim, corrigimos a última injustiça desta publicação: ‘Manhã de Carnaval’ também é de Antônio Maria. :) |
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segunda-feira, 19 de agosto de 2024
Uma grande volta de medalhas, diplomas, cortinas e Cannes
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