Duzentas formas de estar no mundoO RelevO chega à marca de duzentas edições impressas; Barão de Itararé.Duzentas edições. Às vezes, quando escrevemos um número assim, grafado com efeito e por extenso, tentamos ampliar seu corpo para que acomode tudo o que não cabe nos contornos de um algarismo. Outras vezes, preferimos nem olhar tão de perto: duas centenas de meses em que um jornal literário independente, de papel, insistente, teimoso, ocupante de espaço no mundo real, conseguiu atravessar o tempo sem interrupções. Em um país com índices de leitura desestimulantes, que cria obstáculos silenciosos e permanentes à formação de leitores, esse feito diz menos sobre a sobrevivência de um impresso e mais sobre a permanência de uma comunidade que insiste em sustentá-lo. Em setembro, o RelevO completou 15 anos: “O caminho é sempre maior que o caminhão”, relembra o Barão de Itararé. Há quem acredite que números traduzem um trabalho. Não traduzem, mas servem como referência. Eles não revelam as madrugadas de edição, as revisões que se multiplicam, as discussões editoriais, as caixas de arquivo abarrotadas, as dobras de jornal feitas à mão, os improvisos logísticos, o cuidado quase doméstico que um projeto cultural independente exige. Os números não registram o silêncio de quem escreve, o alívio de quem encontra publicação, o entusiasmo de quem abre o envelope. Ainda assim, eles nos ajudam a perceber que algo continua mesmo quando os passos são curtos e discretos. Não é uma conversa sobre estatística, de fato. Nunca foi. Tratamos de continuidade, uma das formas mais exigentes de estar no mundo. A continuidade exige um tipo de atenção invisível: a diária, artesanal. Em 15 anos, atravessamos crises culturais, cortes de verba, mudanças de governo, rupturas tecnológicas, cansaços invisíveis. Resistimos ao canto de sereia das plataformas digitais. Reconhecemos que há menos meses de abundância e mais meses de sobrevivência e, ainda assim, manter o gesto. Pouco se fala que a continuidade exige que outras ideias não saiam do terreno da imaginação, uma vez que continuidade exige foco. Novas ideias podem matar ideias anteriores por falta de energia. Se chegamos à edição 200 é porque nunca estivemos sozinhos. O RelevO aprendeu a existir porque encontrou colaboradores que confiam, leitores que carregam exemplares para novos leitores, assinantes que financiam o projeto, apoiadores que acreditam na cultura antes dos resultados, voluntários que ajudam sem serem convocados, livreiros que nos acolhem e pessoas que descobrem o jornal nos espaços culturais e nos levam para casa como quem adota um hábito. A continuidade é o nosso manifesto… e a nossa prestação de contas. O tempo, quando acumulado, não forma apenas um arquivo. Forma um corpo vivo. As 200 edições não são uma coleção de papéis. São um projeto que aprendeu a crescer ao lado das pessoas que o leem. Com o tempo, percebemos que cada edição funciona como uma espécie de parêntese no calendário. A rotina mensal é um eixo. Assim, manter um jornal de papel, mês após mês, é contrariar a lógica da velocidade. É confiar que ainda existem objetos que exigem demora, que pedem cuidado. Um jornal literário não muda o mundo, mas muda as formas de estar no mundo. Acreditamos que a lentidão também produz comunidade e que o encontro entre leitor e página ainda guarda algum segredo intraduzível em estatísticas. Por isso, continuamos e novamente sacamos o Barão de Itararé: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”. Ao chegarmos à edição 200, reafirmamos nosso compromisso com esse modo de existir. Publicar textos que não caberiam em outro lugar, sustentar uma curadoria que desafia a pressa, cultivar uma leitura que pede fôlego, acolher formas de expressão que não se encaixam em algoritmos. Continuar, apesar do tempo, com o tempo, pelo tempo, é o que nos fortalece. Obrigado por fazer parte dessas duzentas edições. Uma boa leitura a todos. |
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sexta-feira, 28 de novembro de 2025
Duzentas formas de estar no mundo
segunda-feira, 24 de novembro de 2025
Seu pai morto será um anúncio na sua geladeira
Seu pai morto será um anúncio na sua geladeiraEnclave #136: claaaro que não; isso nunca vai acontecer! Repent, for the end is nigh. Quatro mil semanas.
EDITORIALBom dia! Bem-vindo(a) à Enclave #136, a newsletter que vaia pé. Como? Ah, vai a pé. Isso. A newsletter que vai a pé. Assine para receber a Enclave de graça! HIPERTEXTOEm breve, o fantasma de seu pai anunciará promoções de Black Friday na sua geladeiraJá comentamos por aqui que anúncios são um dos maiores propulsores da ação humana. Onde há uma pessoa haverá um anúncio: no transporte público, no elevador, em Marte (aguardem).
Anúncios representam 98% das receitas da Meta (Facebook) e 76% da Alphabet (Google). Calcule o valor colossal atribuído a essas empresas (US$ 1,5 e US$ 3,5 trilhões, respectivamente) e fica fácil entender como esse recurso se tornou praticamente a base da economia digital¹. E assim você não escapa de anúncios no transporte público, no elevador ou na esteira da academia. Telas são baratas, e onde há humanos há telas, e onde há telas há anúncios. Alguém está pagando para aparecer na tela do elevador com a esperança de que aquilo traga algum retorno a seu negócio. Por sua vez, geladeiras – algumas geladeiras – passaram a ter telas. Não geladeiras quaisquer. Geladeiras smart, que fazem muito mais que… refrigerar². Consideremos por um minuto que, com o tempo, isso se torne um padrão da indústria. Comprar uma geladeira, instalar um app que integre seu cadastro à geladeira (já consigo me ver suando frio com uma autenticação de dois fatores para associar a geladeira ao meu smartphone). Receber notificações na geladeira. Isso lhe parece realmente inverossímil? Pois bem, de todo modo, haverá telas. Quem sabe as próprias fabricantes passem a empurrar geladeiras smart, porque afinal telas oferecem oportunidades, e por que deixar de aumentar um pouquinho a receita com uma linha paralela de – tão baratos, tão práticos! – anúncios??? Estou obviamente confabulando; nada é informação — exceto pela confirmação da Samsung de que, bem, hehehe, sabe como é, né, não tá fácil pra ninguém… Anúncios na geladeira. Este é o primeiro fato deste enclave. Anúncios. Na geladeira. É realmente inverossímil um futuro em que sua geladeira parte de um plano gratuito que não congela, e para usufruir do freezer você precisa assinar o plano pago (com e sem anúncios, este último um pouquinho mais caro…)? Espremidos entre emerdação e gamificação, estamos realmente tão longe disso?
Pois bem, há um segundo fato. Talvez vocês já tenham visto o mentecapto responsável por isto aqui, um app que permite… manter vivo o avatar de um ente querido. As comparações Black Mirror são tão óbvias que nem merecem detalhamento maior³. A ideia é grotesca (por motivos que, a meu ver, também dispensam um detalhamento maior) e, imagino eu, não vá ter grande adesão. Por ora. Até que alguém – quem sabe, quem sabe – amarre melhor as oportunidades. Talvez alguém que vale trilhões (asteriscos) e é capaz de mover um ecossistema inteiro. Talvez oportunidades como anúncios. Possivelmente embebido num pessimismo exagerado, pergunto outra vez: é tão inverossímil assim imaginar o avatar da sua avó lembrando-lhe sutilmente que aquela máquina de lavar que você andou olhando (o avatar da sua avó está integrado ao histórico do seu navegador) acabou de entrar em promoção? Na versão gratuita, claro. Pagando um pouco mais, você tem acesso à personalidade completa da sua avó. Uma versão que não sugere apostar na Betano ou vestir Insider. Uma versão que permite addons como agregadores de preços ou ferramentas de gestão (a disciplina da minha avó mantida viva num Kanban). No lar do futuro, é completamente inverossímil integrar o app da sua geladeira ao melhor app de avatares do mercado? Tela sobre tela. Tudo maravilhosamente conectado (com autenticação em dois fatores). É mesmo improvável escutar a voz de seu pai morto emergindo da geladeira a sussurrar: “Filho, o frango está acabando. Já experimentou o sassami Copacol?”, seguida de um aviso — PARA REDUZIR ANÚNCIOS E CONGELAR CARNE, ASSINE O PLANO PREMIUM? Nada disso vai acontecer. … Certo? Se você gostou deste texto, talvez se interesse por alguns outros lamúrios da Enclave:
BAÚLeva simplesmente o tempo que leva
Oliver Burkeman, Quatro mil semanas: Gestão de tempo para mortais (Ed. Objetiva, 2022). 1 Notícia deste mês: “Documentos internos da empresa mostram que a Meta projetou internamente, no final do ano passado, que obteria cerca de 10% de sua receita anual total – ou US$ 16 bilhões – com a veiculação de anúncios de golpes e produtos proibidos” Forbes. 2 Eu, que do fundo do coração não me considero um ludita em nenhum aspecto, resisto muito à ideia de geladeiras e máquinas de lavar smart. Porque, como acabei de apontar (mas vale o reforço), a principal função de uma geladeira é resfriar; e a principal função de uma máquina de lavar, lavar. É óbvio, soa estúpido, mas… aqui estamos. Tudo, afinal, há de ser otimizado. 3 ‘Black mirror’: criador da série diz que mundo está muito triste para uma nova temporada. O Globo, 2020. © 2025 Jornal RelevO |



